A tragédia no Rio Grande do Sul e a escala dos problemas

No artigo anterior, eu usei o histórico dos grid urbanos como uma espécie de gancho para contextualizar a falta de uma cultura de planejamento urbano no Brasil. E parte importante dessa história é como essa lacuna é pouco difundida e debatida. Assim sendo, nada mais justo que ir para o caminho inverso, e destacar um exemplo de artigo coloca um problema e soluções nessa perspectiva mais ampla.

O artigo de opinião de José Galló, ex-CEO das Lojas Renner, tratando das enchentes no Rio Grande Sul de 2024, faz exatamente isso. (O artigo é de 19/05/24, foi publicado no Brazil Journal com o título "A reconstrução criativa que se impõe aos gaúchos”). Recomendo fortemente a leitura.

Como o artigo descreve, as enchentes foram devastadoras: quase 400 municípios afetados, “mais de 200 pontes destruídas, centenas de milhares de lares sem energia e sem água, ao redor de 200 mil casas submersas ou destruídas; parte da safra de grãos e hortigranjeiros levados pelas águas".

“Como está nossa infraestrutura para enfrentar estas situações? Obsoleta!”

Os exemplos são interessantes (copio diretamente do texto, ênfases minhas):

  • As estradas não têm escoamento adequado do volume de água, as nossas pontes são baixas em relação ao leito dos rios, e suas bases de sustentação são frágeis.

  • As margens de muitos rios não têm matas ciliares e, em função disso, muita terra e detritos escorrem para os leitos, diminuindo o volume de escoamento das águas. As construções de muitas casas, principalmente as mais humildes, não estão preparadas para a força dos ventos ou das águas.

  • Em muitas ruas e estradas há plantações em morros que substituem a mata nativa e com isto facilitam as avalanches de terra e árvores.

  • Como agora já é público, das 23 casas de bombas de escoamento de águas, só duas ou três estavam funcionando em Porto Alegre no início da enchente.

  • Frágil, uma comporta do muro que separa a cidade do Lago Guaíba cedeu.

Diagnóstico com perspectiva:

  • Gostaria que compreendessem que não faz sentido culpar os atuais ocupantes dos três níveis do Poder Executivo, porque isso seria injusto.

  • Estamos colhendo o acumulado de um jeito de governar. Com eleições a cada quatro anos, os planos são feitos em uma gestão e abandonados na seguinte, ou pior, são feitos novos planos esquecendo os do passado.

  • Além disso, vários cargos decisórios na área de infraestrutura são ocupados por políticos sem experiência técnica

  • O Poder Público tem adotado uma visão de curto prazo, casuística, sem pensar no futuro – e a política de infraestrutura é, na maioria dos casos, feita de remendos e quebra-galhos.

Conclusões:

  • Se, como dizia Einstein, continuarmos fazendo as mesmas coisas, continuaremos a obter os mesmos resultados – no caso, os mesmos problemas, com as mesmas consequências.

  • Precisamos de uma mudança na mentalidade para a reconstrução. Uma reconstrução criativa que avalie as causas da destruição e faça o que precisa ser feito de uma maneira diferente, preparando-nos para uma nova realidade, que é bem diferente daquela a que estamos acostumados.

  • Uma reconstrução que garanta um futuro com segurança, tranquilidade e bem-estar para as pessoas, principalmente os mais pobres, que como sempre são os mais prejudicados.

  • Isto significa uma mudança de mentalidade. Precisamos pensar diferente, ser criativos, planejar coisas novas e, principalmente, que possam ser executadas rapidamente, usando métodos e equipamentos mais modernos, com mais tecnologia e mais produtividade.

  • … que os recursos para a reconstrução da infraestrutura sejam aplicados de uma forma eficiente e inovadora, com uma mentalidade de longo prazo.  Este é o tamanho do desafio, e toda a sociedade gaúcha precisa se envolver na solução.

A tragédia no Rio Grande Sul expôs de forma implacável a falta de qualidade da infraestrutura - com consequências humanas trágicas. O artigo Galló consegue achar a escala certa para enquadrar o assunto, o que não é tão simples:

  • As manifestações do problema são múltiplas e variadas (pontes baixas, estradas sem escoamento, uso do solo, manutenção etc.);

  • A causa verdadeira parece difusa e intangível (“o jeito de governar”; fazer planos, contratar responsáveis)

  • A solução necessária também é difícil de descrever em poucas linhas (“mudança de mentalidade”; valorização da eficiência, inovação, longo prazo).

E a triste realidade é que desvalorização do longo prazo, da eficiência não se aplica somente em colapsos de infra-estrutura em tragédias climáticas, seu efeito prejudicial sobre a qualidade de vida no Brasil é muito mais extenso. Atacar esse problema, por mais difuso e intangível que possa parecer - da forma que Galló  conseguiu fazer - tem que ser uma prioridade.

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