Grades, grelhas e grids: as cidades e seus planos (parte 2)

Conforme mencionado no artigo anterior, propus-me a esboçar um comparativo do papel do grid no histórico do planejamento urbano no Brasil com o de outros países representativos.

Acredito que Estados Unidos e Argentina são boas escolhas:

  • Ambos países de grandes dimensões e populosos, assim como o Brasil. Todos colonizados por exploradores europeus a partir do século XVI.

  • O urbanismo dos Estados Unidos é um dos mais notórios cases de disseminação do grid urbano no mundo. Além disso, Chicago, Nova York e Phoenix foram citadas com destaque no link original.

  • A Argentina é um excelente exemplo das consequências das Leis das Índias da Coroa Espanhola.

  • Ambos são destinos populares para visitantes brasileiros. Argentina é um país vizinho.

  • Buenos Aires com seu urbanismo memorável é um destino turístico popular.

Como aludi no artigo anterior, ocorre uma misto de desconhecimento e indiferença no Brasil com o assunto do grid; não por coincidência é difícil achar literatura não técnica/acadêmica comparando de maneira direta o histórico de planejamento brasileiro com o de outros países “comparáveis”. M

Porém atualmente podemos recorrer a um quebra-galho: os large language models (LLM) de inteligência artificial, como o notório ChatGPT.

Podemos fazer todas as ressalvas necessárias à confiabilidade e precisão das respostas do ChatGPT, mas note-se que estamos estamos de maneira exploratória um tema amplo. As respostas que obtive e transcrevo abaixo servem como um ponto de partida para o debate, que pode (e deve) ser aprofundado por humanos.

Grid nos Estados Unidos

Fiz uma pergunta simples ao ChatGPT (4o, versão Plus): “Porque o urban grid é predominante nos Estados Unidos?” Eis a resposta:

O urban grid — ou plano em grelha — é predominante nos Estados Unidos por uma combinação de fatores históricos, legais, geográficos e culturais. Aqui vão os principais motivos:

1. Legislação fundacional: The Land Ordinance of 1785

Esse foi o ponto de partida. Antes mesmo da Constituição, o governo dos EUA estabeleceu uma lei para dividir as terras do oeste (recentemente adquiridas) de forma sistemática. O território seria dividido em "townships" de 6 milhas por 6 milhas, compostos por 36 lotes de 1 milha quadrada (sections).

Objetivo: facilitar a venda de terras federais para arrecadar recursos.

Resultado: criação de uma malha regular que influenciou a urbanização futura.

2. Praticidade e rapidez de implantação

O grid era:

  • Fácil de mapear, dividir e vender;

  • Simples de reproduzir com agrimensores e topógrafos mesmo em áreas não urbanizadas;

  • Ideal para cidades fundadas “do zero” no território em expansão para o oeste.

3. Topografia favorável

Grande parte do território dos EUA (especialmente o centro e oeste) tem relevo plano ou suavemente ondulado, o que torna o grid mais viável. Diferente de países como Itália ou Brasil, onde o relevo mais acidentado dificulta malhas regulares.

4. Influência de cidades-modelo

  • Filadélfia (1682), projetada por William Penn, foi um dos primeiros exemplos de cidade em grid na América do Norte — e se tornou um modelo replicado em várias colônias e depois estados.

  • Nova York (Manhattan) adotou formalmente o plano em 1811 com o Commissioner’s Plan, que organizou 12 avenidas norte-sul e centenas de ruas leste-oeste.

5. Mentalidade iluminista e racionalista

No período da fundação dos EUA, havia uma forte crença na ordem, racionalidade e progresso. O grid simbolizava essas ideias — uma cidade ordenada representava uma sociedade civilizada.

6. Padronização e especulação imobiliária

O grid facilitava a:

  • Padronização de lotes para venda;

  • Valorização e especulação imobiliária;

  • Criação de novas cidades por incorporadores privados, que podiam seguir modelos já testados.

Grid na Argentina

Mesma pergunta: “Porque o urban grid é predominante na Argentina?” Resposta do ChatGPT:

O urban grid é predominante na Argentina principalmente por influência direta da colonização espanhola, especialmente através das Leyes de Indias, um conjunto de normas que padronizava o modo de fundar e organizar cidades no Império Espanhol. Aqui estão os principais fatores:

1. Leyes de Indias (1573): a base legal do grid hispânico

As Leyes de Indias exigiam que todas as novas cidades fundadas nas Américas seguissem um traçado em grade (quadriculado):

  • Uma plaza mayor (praça central) como ponto de referência;

  • Ruas retas e perpendiculares;

  • Quadras regulares com lotes organizados ao redor da praça;

  • Distribuição ordenada de funções: igreja, cabildo (prefeitura), mercado, residências.

Essa lógica foi aplicada em quase todas as cidades fundadas pela Coroa Espanhola — e a Argentina, como parte do Vice-Reino do Rio da Prata, seguiu essa diretriz à risca.


2. Geografia favorável: relevo plano da Pampa

A vasta região das Pampas, onde se localiza grande parte das cidades argentinas (inclusive Buenos Aires), é plana e aberta, facilitando:

  • O traçado ortogonal (em grade);

  • A expansão linear e previsível das cidades;

  • A manutenção do padrão mesmo com o crescimento urbano.

3. Continuidade do modelo após a independência

Mesmo após a independência da Espanha (1816), a Argentina manteve o urbanismo em grid como padrão:

  • Era considerado racional, moderno e eficiente;

  • Facilitava a administração fundiária, a construção de infraestrutura e o crescimento das cidades;

  • Combinava bem com o desejo de projetar uma nação “civilizada” nos moldes europeus do século XIX.

4. Exemplos marcantes de aplicação

  • Buenos Aires: seu núcleo colonial tem um grid espanhol clássico, que foi expandido mecanicamente com avenidas mais largas e diagonais no século XIX e início do XX.

  • Mendoza, Córdoba, Salta: cidades do interior também mantêm grids regulares bem preservados, centrados em praças e igrejas coloniais.

5. Identidade urbana argentina

O urban grid na Argentina virou sinônimo de ordem e legibilidade — inclusive em cidades pequenas do interior. Isso contribui para a percepção de que as cidades argentinas são mais organizadas do que em países como o Brasil, onde o traçado é frequentemente mais caótico ou fragmentado.

Grid no Brasil

Apenas inverti a pergunta: “Porque o urban grid não é predominante no Brasil?”. Resposta do ChatGPT:

Excelente pergunta — e muito reveladora sobre a história urbana do Brasil. Diferente de países como Argentina ou Estados Unidos, o urban grid nunca se tornou o padrão predominante no Brasil por uma combinação de fatores históricos, geográficos, administrativos e culturais. Vamos por partes:

1. Colonização portuguesa: traçado orgânico e adaptativo

Ao contrário da Espanha, que impôs as Leyes de Indias com exigência de grids retangulares, Portugal não tinha uma norma urbanística formal e padronizada para suas colônias.

  • As cidades portuguesas (e brasileiras) cresceram de forma mais orgânica, adaptadas ao relevo, à costa e à lógica defensiva;

  • Era comum priorizar posições estratégicas (colinas, portos, rios) em vez de simetria geométrica;

  • O resultado: traçados sinuosos, ruas estreitas, becos e curvas — especialmente nos centros históricos (Salvador, Recife, Olinda, Ouro Preto, Rio de Janeiro).

2. Relevo acidentado e adaptação ao terreno

Grande parte do litoral brasileiro — onde surgiram as primeiras cidades — tem relevo acidentado, montanhoso ou fragmentado por rios e baías.

  • O grid, que exige terreno plano, era mais difícil de aplicar;

  • A urbanização se adaptava ao contorno do relevo, resultando em traçados irregulares.

3. Ausência de planejamento urbano sistemático

Durante séculos, o urbanismo no Brasil foi reativo, improvisado e lento:

  • Poucas cidades foram planejadas do zero;

  • Quando houve planejamento, ele era geralmente limitado ao centro ou a algum bairro novo;

  • O crescimento informal — sem loteamento legal ou controle público — contribuiu para a fragmentação urbana.

4. Expansão periférica sem controle

Especialmente no século XX, o crescimento explosivo das cidades se deu por meio de:

  • Loteamentos informais e irregulares;

  • Avenidas estruturais sem articulação com o restante da malha;

  • Áreas com traçado labiríntico, disfuncional ou desconectado;

  • Pouco uso do grid como modelo de expansão urbana sistemática.

5. Exceções: onde o grid foi adotado

Apesar de não predominante, o grid foi usado pontualmente:

  • Fundação de cidades planejadas: Brasília (1956), Maringá (1947), Goiânia (1933);

  • Expansões ferroviárias: cidades do interior paulista e gaúcho fundadas no século XIX muitas vezes têm traçados em grade;

  • Loteamentos privados modernos: em bairros planejados por incorporadoras, o grid pode ser usado como base.

6. Falta de continuidade institucional

Mesmo onde o grid foi adotado, faltou continuidade:

  • Mudanças políticas, falta de planejamento metropolitano e urbanização espontânea acabaram engolindo ou desfazendo as lógicas ortogonais;

  • Há casos em que o grid foi iniciado, mas abandonado no crescimento posterior da cidade.

Tabela comparativa: EUA x Argentina x Brasil com relação à adoção do grid

ChatGPT gerou por iniciativa própria

Conclusão

A comparação histórica deixa claro o quanto o Brasil tem uma relação tênue com a implantação de urbanismo em grid. A comparação com os outros países nesse aspecto enfatiza o quanto o urbanismo no Brasil foi “reativo, improvisado e lento”.  Também destaca a falta de continuidade e de controle na expansão das periferias. O desenho irregular de ruas etc.

O relevo desafiador do litoral brasileiro encorajou mais ainda a falta do planejamento, quando se pode argumentar que por isso mesmo o planejamento deveria ter sido até mais importante.

E sobretudo, fica claro que por mais complexos, multifacetados e multi-causais que possam os inúmeros problemas atuais na maioria das cidades brasileiras, podemos afirmar que eles têm surgido e se aprofundado há séculos.

Frequentemente eu leio artigos, muito coerentes e pertinentes, apontando um determinado problema em uma ou mais cidades brasileiras e prescrevendo uma ou um conjunto de medidas específicas como uma solução importante. “Aumentar o adensamento”, “investir em transporte público de qualidade”, “criar zoneamento multiuso”, “criar residências no centro” etc. etc. etc. No entanto, é a minha impressão,  que a maior dessas propostas simplesmente “assume” que existe/vai existir a capacidade de planejamento institucional para conceber, executar e evoluir a solução sendo proposta, de maneira sistemática, consistente, contínua. E, de novo na minha opinião, o enfoque na história dos grids deixa claro como isso está longe de ser realidade.

E por isso fica uma hipótese: será que que a criação de uma verdadeira cultura de planejamento, no sentido mais amplo da palavra, não deveria uma prioridade central no urbanismo brasileiro?

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