Grades, grelhas e grids: as cidades e seus planos (parte 1)
“Desenho urbano em grelha: a arte esquecida de fazer cidades” é o nome de um excelente artigo do Movimento Somos Cidade que o site Caos Planejado publicou em agosto em 2023.
O subtítulo do artigo explica o termo: “O planejamento de municípios no formato de grelha, que é composto por ruas que se cruzam perpendicularmente e criam ângulos retos, facilitam o deslocamento pelas localidades, incentivam a interação social e potencializam o uso da infraestrutura.”
O artigo faz uma boa apresentação do conceito, suas excelentes vantagens, um pouco do seu histórico e traz exemplos marcantes do desenho urbano em grelha, como Nova York e Barcelona. O “esquecimento” aludido no título tem a ver com projetos urbanísticos do século XX, que buscaram substituir o modelo por novos conceitos; a mensagem do artigo é que as últimas décadas tem sido marcado por uma reapreciação do desenho em grelha. Significativamente, lendo o artigo fica claríssimo que o desenho em grelha tem sido há séculos um componente-chave para o que há de melhor no urbanismo no mundo.
Porém, na minha leiga opinião, uma introdução ao assunto para o público brasileiro poderia ter um enfoque levemente diferente: ao contrário dos outros países mencionados no artigo, o Brasil não “esqueceu” o desenho em grelha. Seria mais o caso de se dizer que o Brasil praticamente não conhece o desenho urbano em grelha na forma e intensidade descrita no artigo. (Há exceções importantes, claro, mas na prática elas “confirmam a regra”, como veremos depois).
Esse descompasso do Brasil com outros países em que a “grelha urbana” chegou a ser predominante tem até um aspecto semântico. Em inglês, “urban grid” ou “grid plan” são termos cotidianos. Eles servem tão fortemente para prescrever como a estrutura de vias e espaços urbanos são organizados que os mesmos termos costumam ser aplicados na hora de descrever esquemas urbanos existentes e suas ruas reais. Em outras palavras, “urban grid” quer dizer tanto ‘desenho urbano em grelha’ como o que costumamos chamar de ‘malha urbana’ de uma cidade.
Quais as chances reais de “desenho urbano em grelha” entrar no debate público cotidiano no Brasil?
(Aliás, é até curioso o próprio termo “malha urbana”. Em vez de um termo de origem geométrica, já adotamos um muito mais flexível, facilmente aplicável para uma “maçaroca” de ruas irregulares, curvas e e improvisadas, se enrolando umas nas outras…)
Além disso, talvez a tradução mais direta de ‘grid’ para ‘grade’ ajudaria: grade urbana, grade viária, desenho urbano em grade soam melhor.
Mas ainda não é o ideal. Para nós ’grade’ lembra imediatamente uma prosaica ‘cerca’. Em inglês ‘grid’ não é sinônimo de ‘fence’.
Por isso fica uma sugestão - manter o termo em inglês: grid urbano, grid viário, desenho urbano em grid.
Talvez seja a melhor forma de dar a um nome com sentido geométrico que carrega uma especificidade histórica de aplicação sistemática.
(Mas o que eu sei? Quem sabe um movimento promovendo “cidades jogo-da-velha” seja capaz de pôr o assunto em evidência…
O que exatamente um artigo introduzindo o grid urbano ao Brasil poderia abordar? Após a explicação inicial do que é o grid, qual seu histórico e seus benefícios, eu continuaria com esses tópicos:
A perspectiva histórica de “como” o grid urbano foi objetivamente implementada em várias cidades e países significativos;
O entendimento de como a implementação do grid no Brasil foi longe de ser predominante;
Uma relação de evidências e argumentos de como esse assunto precisa fazer parte de qualquer diagnóstico das causas dos principais problemas urbanos brasileiros
Last but not least, um comentário sobre como nossa ignorância e indiferença em relação ao grid urbano fazem parte e contribuem para essa dinâmica.
Com relação ao último item, menciono um detalhe curioso. Um dos mais significativos exemplos históricos de implantação de grids se encontra na histórica da colonização espanhola da América e Ásia (Filipinas): as Leyes de Indias. Como diz a Wikipedia, “As Leis das Índias são a legislação promulgada pelos monarcas espanhóis para regular a vida social, civil, política e econômica dos territórios americanos e asiáticos pertencentes ao Império Espanhol”.
Mais Wikipedia: “tais leis contemplaram o planejamento urbano: para orientar e regularizar o estabelecimento de presidios (cidades militares), missões e pueblos (cidades civis), o rei Felipe II desenvolveu a primeira versão das Leis das Índias. Este guia abrangente foi composto por 148 ordenanças para ajudar os colonos a localizar, construir e povoar assentamentos. Essas ordenanças seriam usadas em todo o que agora é chamado de América do Sul, América Central, México, o oeste americano dos EUA e as Índias Orientais Espanholas.[ 3][4] Eles codificaram o processo de planejamento da cidade e representaram algumas das primeiras tentativas de um plano geral. Assinadas em 1573, as Leis das Índias são consideradas as primeiras diretrizes abrangentes para o design e desenvolvimento de comunidades… No Livro IV da compilação de 1680 das Leis das Índias, os planos foram estabelecidos em detalhes em todas as facetas da criação de uma comunidade, incluindo o planejamento urbano.”
As Leis das Índias tiveram um impacto tremendo no histórico do desenvolvimento urbano da América Latina espanhola e a cultura de planejamento urbano estabelecida por ela foi perpetuada após as colônias se tornarem independentes. Não é possível entender a história de grandes cidades como Buenos Aires ou Cidade do México sem conhecer tais leis.
E como isso tem a ver com a cultura do grid no Brasil? Apenas o fato que o artigo, bastante extenso e com mais de 90 referencias bibliográficas na versão original, está traduzido para outros sete idiomas. E o português não é uma delas.
(Mais uma curiosidade: a versão espanhola do artigo é muito mais extensa que a que inglesa, mas ela se aprofunda nos assuntos legais, indígenas, políticos etc. e nem chega a mencionar a parte de urbanismo. É a versão inglesa, no total mais concisa que dedica um seção inteira para relacionar a lei com sua influência no urbanismo latino-americano e o sudoeste dos Estados Unidos.)
Ah, e seu tivesse feito esse texto até três meses atrás, eu poderia dizer que o Google praticamente não encontra resultados para uma pesquisa em português para “Lei das Indias” e “urbanismo”, mas justamente o Caos Planejado, que publicara “Desenho Urbano em Grelha”., agora em 23 de janeiro de 2025 também publicou o excelente “O planejamento padronizado das cidades latino-americanas e as Leis das Índias”!!!
(Mas para enfatizar meu comentário de como o assunto é pouco conhecido no Brasil, ressalto que o artigo foi originalmente publicado em inglês e seu autor, Moises Carrasco, é um arquiteto em Montreal nascido em Honduras!)
Mas enfim. O que importa agora - além de parabenizar o Caos Planejado no seu trabalho de ‘difundir conteúdo de excelência sobre urbanismo em linguagem e formato acessíveis’ - é tentar esboçar um comparativo do papel do grid no histórico do planejamento urbano no Brasil com outros países representativos. Mas isso é tema para um próximo artigo.