Orlando em Debate

Não faltam críticas ao urbanismo de Orlando - o popular destino turístico e residencial na Florida nos Estados Unidos -no episódio dedicado à cidade do canal São Paulo nas Alturas, do jornalista Raul Juste Lores. Distâncias excessivas, excesso de uso de carro, falta de opções de transporte público, um centro vazio de pessoas, deslocamentos a pé inviáveis são alguns dos problemas destacados - além claro da arquitetura medíocre dos condomínios suburbanos.

Como se trata de um vídeo sobre feito por e para brasileiros, as conclusões do vídeo se dirigem a nossa realidade:

 “Prefeitos e construtores que se deslumbram com Orlando deveriam aprender com as cidades asiáticas: Tóquio, Seul, Hong Kong, Xangai, Singapura, Shenzhen — metrópoles muito maiores que São Paulo, com ótimo metrô e ótima mistura de usos.

Não precisamos copiar as cidades americanas... E há exemplos muito melhores que Orlando.”

Orlando, claro é, considerado uma espécie de ‘paraíso de primeiro mundo’ para uma parcela significativa da população brasileira, que vê nas avenidas largas, condomínios amplos, shoppings e outlets de Orlando uma alternativa superior à vida atribulada e caótica na maioria dos centros urbanos brasileiros. O enfoque polemizador do vídeo é proposital: incentiva o debate e enfatiza que o Brasil precisa parar de colocar o carro no centro de tudo.

Se o vídeo é um convite ao debate, esse texto é um esboço de uma resposta, na qual eu começaria dizendo que tudo o que vídeo fala sobre Orlando está correto, mas o que vídeo fala também não é tudo. O que falta?

Começando pelo contexto histórico: Orlando era uma cidade pequena e pouco conhecida no interior da Florida, até que em 1965 foi anunciado que a Disney escolhera a região para criar um mega complexo de parques e hotelaria na cidade. O primeiro parque do Walt Disney World, Magic Kingdom, foi inaugurado em outubro de 1971. Foi nesse contexto que a cidade e a região metropolitana começaram a crescer aceleradamente.

Ponto 1) Em primeiro lugar, vale mencionar que o “urban sprawl” de Orlando cresceu de forma intensa entre as décadas de 1990 a 2010, mas não é mais o caso. Pelo contrário, em anos recentes várias medidas tem sido tomadas para responder aos problemas que Lores destaca no vídeo.

Como me responde o ChatGPT, “a revitalização do centro de Orlando está em pleno andamento, impulsionada por uma série de projetos urbanos ambiciosos que visam transformar a região em um espaço mais vibrante, acessível e sustentável”. Vou transcrever a lista inteira do LLM por curiosidade:


🏗️ Principais Projetos em Desenvolvimento

1. Society Orlando

Um complexo residencial com 462 unidades localizado na 434 N. Orange Ave. Este empreendimento visa atrair novos moradores para o centro, promovendo uma maior densidade populacional e dinamismo urbano. selectarealty.us

2. Westcourt Orlando

Um projeto de uso misto avaliado em US$ 500 milhões, situado próximo ao Kia Center. Inclui um hotel de 260 quartos, 270 apartamentos, uma arena de entretenimento com 3.500 lugares, escritórios, espaços comerciais e uma área verde de 1,5 acre. A construção está prevista para iniciar no final de 2024, com conclusão estimada para março de 2027.imoveisnaflorida.com+2constructiondive.com+2Instagram+2

3. Creative Village

Um distrito de inovação que combina residências, educação e tecnologia. Abriga campi da UCF e da Valencia College, além de escritórios e espaços residenciais. Novos projetos incluem arranha-céus residenciais e um hotel de destaque.imoveisnaflorida.comNeighborselectarealty.us

4. The Canopy

Anteriormente conhecido como "Under-I Project", este espaço urbano sob a I-4 será transformado em um centro comunitário com áreas verdes, instalações artísticas e espaços para eventos. A construção está prevista para começar em 2025, com duração estimada de 24 meses. Orlando.gov

5. Renovação do Lake Eola Park

Um investimento de US$ 60 milhões para modernizar o parque icônico de Orlando. As melhorias incluem a realocação da marina dos pedalinhos, expansão do anfiteatro, novos banheiros e calçadas mais largas. O projeto ainda está em fase de planejamento, com cronograma de construção a ser definido. FOX 35 Orlando

🚶‍♂️ Mobilidade e Infraestrutura

DTO Action Plan, lançado em 2024, propõe investimentos de até US$ 750 milhões para transformar o centro de Orlando. As iniciativas incluem:WFTV+1Downtown Orlando+1The Crazy Tourist+4Orlando.gov+4imoveisnaflorida.com+4

  • Revitalização da Magnolia Avenue, com calçadas ampliadas e espaços públicos aprimorados.Orlando.gov

  • Melhorias no sistema de transporte público, incluindo ruas, calçadas e ciclovias.

  • Expansão de parques e áreas verdes, como o Kevin R. Tyjeski Park. The Business Journals

🏘️ Desenvolvimento de Uso Misto

A cidade está incentivando projetos que combinam residências, comércio e lazer em um único espaço. Exemplos incluem o Creative Village e o Lake Nona Town Center, que promovem uma vida urbana mais integrada e sustentável. imoveisnaflorida.com

🌳 Investimentos Públicos e Sustentabilidade

Community Redevelopment Agency (CRA) está adquirindo propriedades no centro para transformá-las em parques e habitações acessíveis. Além disso, projetos como o The Canopy enfatizam a criação de espaços verdes e sustentáveis, promovendo a inclusão e o bem-estar da comunidade. Spectrum News 13Orlando.gov


Ponto 2) Por mais o modelo urbano norte-americano do século passado de priorizar o carro tenha sido massacrado pelos críticos nas últimas décadas, começam a surgir questionamentos… Um bom exemplo é esse artigo da The Economist de novembro de 2023. O título deixa claro a tese: “Em defesa do vício americano por carros - Como a dependência de veículos torna o país mais justo e eficiente”

Vou incluir boa parte do artigo, em tradução livre, enfatizando os principais pontos em negrito:


Os Estados Unidos são muito mais dependentes de automóveis do que qualquer outro grande país, com uma média de cerca de dois veículos por domicílio. Isso, por sua vez, está ligado a muitos males: obesidade, poluição, expansão suburbana, entre outros.

Apesar desses horrores, mais americanos do que nunca estão optando por uma existência definida pelo carro, escolhendo viver nos subúrbios. Dados do censo revelam que, após décadas de crescimento constante, pouco mais da metade da população americana agora vive nas “periferias”. Parece um clássico caso de divergência entre a opinião das elites (carros e subúrbios são péssimos) e as preferências populares (as pessoas gostam bastante deles). Para muitos, as principais atrações do subúrbio são os menores custos com moradia e a maior segurança. Mas pesquisas recentes iluminam como os carros são parte essencial da equação, tornando os subúrbios americanos impressionantemente eficientes e equitativos.

Comecemos pela conveniência. É bem sabido que as cidades americanas são configuradas para veículos — um processo que começou na década de 1920 com o Ford Modelo T. Projetos urbanos centrados em carros se tornaram dominantes em todo o país, com vias largas, amplo acesso a rodovias expressas e fartura de estacionamentos. Em maior ou menor grau, outros países copiaram esse modelo. Mas os Estados Unidos chegaram mais perto de aperfeiçoá-lo. Em um estudo publicado em agosto com apoio do Banco Mundial, um grupo de economistas analisou a velocidade das vias em 152 países. Sem surpresa, países ricos têm tráfego mais rápido que os pobres. E entre os países ricos, os EUA estão muito à frente: o tráfego americano é cerca de 27% mais veloz que o de outros países membros da OCDE. Das 20 cidades com trânsito mais rápido no mundo, 19 estão nos Estados Unidos.

Não é que as estradas americanas sejam melhores por si só. A velocidade é um testemunho do amor dos americanos tanto pelos subúrbios quanto pelas cidades pequenas que têm clima suburbano. Comparadas às de outros países da OCDE, as cidades americanas têm 24% menos população, cobrem 72% mais área e contam com 67% mais vias largas. Isso tudo permite que os motoristas se desloquem com rapidez.

A velocidade no trânsito reduz distâncias. Um conceito popular entre urbanistas hoje é o da “cidade de 15 minutos” — o ideal de bairros onde se pode chegar ao trabalho, escola e lazer em até 15 minutos a pé ou de bicicleta. Muitos americanos talvez simplesmente não vejam necessidade dessa inovação, já que já vivem em cidades de 15 minutos — desde que se locomovam de carro. A maioria dos itens essenciais — supermercados, escolas, restaurantes, parques, médicos e mais — está a poucos minutos de carro para os moradores do subúrbio.

A onipresença do carro tem outro benefício pouco valorizado. Um estudo recente de Lucas Conwell, da Universidade Yale, e colegas, analisou regiões urbanas na América e na Europa. Eles calcularam “zonas de acessibilidade” — áreas de onde é possível chegar com facilidade ao centro da cidade. Embora as cidades europeias tenham transporte público melhor, as cidades americanas, no geral, são mais acessíveis. Considere o tamanho das zonas de acessibilidade entre 15 e 30 minutos dos centros urbanos. Usando transporte público, a média é de 34 km² nos EUA contra 63 km² na Europa. Usando carro particular, a diferença é ainda mais impressionante: 1.160 km² nos EUA contra 430 km² na Europa.

Da mesma forma que é fácil chegar ao centro das cidades americanas, também é fácil sair delas. Com o tempo, isso drenou a vitalidade dos centros urbanos, à medida que as pessoas fogem para casas distantes no fim do dia de trabalho. No entanto, há uma maneira mais positiva de ver esse fenômeno: é justamente essa acessibilidade que tornou casas maiores e ruas mais tranquilas acessíveis para uma ampla fatia da população. Em sua análise do censo de 2020, William Frey, do think tank Brookings Institution, mostrou que os subúrbios se tornaram muito mais diversos ao longo dos anos. Em 1990, cerca de 20% dos moradores suburbanos eram não brancos. Esse número subiu para 30% em 2000 e 45% em 2020.

Não que os carros sejam uma panaceia. Ter ou alugar um custa caro — um fardo especialmente grande para os trabalhadores mais pobres. Por isso, é comum ouvir lamentos nas cidades americanas sobre o estado lamentável do transporte coletivo. Mas essa percepção, embora comum, não é totalmente precisa. Mesmo tendo sido construídas principalmente para carros particulares, as vias são um recurso compartilhado — e podem ser vistas como os “trilhos” para ônibus. No estudo, Conwell e seus colegas concluem que o transporte por ônibus nos EUA é surpreendentemente eficaz: as opções de transporte público entre subúrbios distantes e centros urbanos são aproximadamente comparáveis entre América e Europa. Embora os EUA possam melhorar os serviços de ônibus dentro de seus centros urbanos, o ponto crucial é que cidades projetadas para carros também podem dar suporte ao transporte coletivo.

Hoje em dia, algumas coisas estão em transformação. Os jovens americanos estão dirigindo menos. Mais cidades estão construindo bairros caminháveis. Nova York pode em breve adotar pedágio urbano. É possível, em resumo, imaginar uma América menos viciada em carros.

Ao mesmo tempo, no entanto, a covid-19 mudou os estilos de vida de maneiras que favorecem os veículos. As pessoas estão indo menos aos escritórios. Isso reduziu a demanda e a arrecadação do transporte público, ao mesmo tempo em que deixou as ruas menos congestionadas — mais agradáveis para os motoristas. Se o aumento do trabalho remoto permitir que as famílias se aprofundem ainda mais no subúrbio, os carros se tornarão ainda mais indispensáveis. Como tudo isso vai se desenrolar?


Enfim, a dependência dos carros é um problema sério nos Estados Unidos, mas o assunto é mais complexo do que sugerido pelos críticos.

Ponto 3) Por fim, é importante considerar o urbanismo de Orlando como parte importante de uma história mais ampla. Vou ilustrá-la com gráficos gerados pelo ChatGPT.

A) Orlando é um case de crescimento populacional:

B) A economia da região tem crescido acima da média dos Estados Unidos:

 C) A taxa de desemprego em Orlando oscila mais nos momentos de crise, mas se recupera mais rápido e tende a ser inferior a média nacional:

D) É interessante ter uma escala da magnitude do fluxo turístico que a cidade recebe. São mais de 70 milhões de visitantes por ano:

E) Em 2023, Orlando recebeu mais de 6 milhões de turistas estrangeiros – mais que o Brasil inteiro:

F) Só por curiosidade, uma comparação do PIB per capita de Orlando Metro com a Grande São Paulo e o Estado de Santa Catarina, estado no Sul onde ficam pólos turísticos como Balneário Camboriú e Penha (Beto Carrero World). Valores ajustados pela paridade do poder de compra.

 G) Em valores nominais a diferença é ainda mais gritante:

O que esses gráficos demonstram, de maneira geral, é um caso de sucesso. Crescimento da populacão, do fluxo de turistas doméstico e internacional, economia acima da média nacional.

 Isso justifica as escolhas urbanisticas de décadas passadas? De modo algum. Mas será que de alguma foram elas podem ter contribuído ou ‘não atrapalhado’? Negar categoricamente parece imprudente.

O urbanismo sprawl fez parte da história de Orlando. A organização do espaço e a oferta de infra-estrutura são ingredientes fundamentais do crescimento econômico. Conceitualmente, não é possível alterar os componentes e esperar que a trajetória de crescimento não se altere de uma forma ou outra significativa.

 Em alguns detalhes, o sprawl foi essencial. A disponibilidade de grandes áreas urbanizadas é um insumo essencial para instalação de grandes parques com infra-estrutura capaz de atender mais de 100 mil visitantes por dia.

Grandes áreas e boa infra-estrutura encorajaram a instalação de muitas grandes empresas na região nos setores de tecnologia, saúde, aeroespacial, defesa, serviços financeiros.

Abundância de terrenos reduziu os preços de terrenos e encorajou a construção de hotéis em grande escala.

O excesso de vagas ofende nossos urbanistas mas é essencial para famílias carregando malas e crianças pequenas ansiosas para conhecer o Mickey ou o Optimus Prime.

E como o Professor Shlomo Angel defende tão bem, é muito mais eficiente se preparar para a expansão urbana com antecedência do que remediar pós-fato. Construir e prever vias arteriais de transporte “antes” é muito mais barato e viável do que “depois”. O mesmo vale para reservar espaços públicos abertos.

E uma vez que a cidade se preparou para a expansão, posteriormente é perfeitamente possível controlar o espraiamento e aumentar a densidade de uma maneira racional – exatamente como Orlando tem feito.

O contraste com muitas cidades brasileiras não poderia ser maior. Aqui podemos ter o mesmo problema de sprawl - com condomínios espalhados e shoppings na beira de estrada que só podem ser acessados por carro - mas com a diferença crucial que não há preparação e planejamento para expansão. A infra-estrutura fica muito cara, improvisada e insuficiente, gerando seríssimos prejuízos à mobilidade, racionalidade da expansão, qualidade de vida e oferta de espaços públicos abertos.

Concluindo

Orlando está longe de ser perfeita, e talvez devíamos aprender mais com o urbanismo europeu e asiático, mas chamá-la de um atraso parece um grande exagero. Diria mais: com seu sucesso e dinamismo, Orlando pode ser sim um bom modelo - só precisamos ter o cuidado de prestar atenção nas verdadeiras lições que ela proporciona.


 P.S. Eu sou um grande fã de São Paulo nas Alturas (o canal e o livro) e do trabalho do Raul Juste Lores. Justamente por ser um conteúdo tão embasado e coerente que o vídeo de Orlando é um ótimo ponto de partida para discussões sobre as cidades que queremos para o Brasil.

Anterior
Anterior

Constituição de 1988 e planejamento urbano, a tragédia invisível

Próximo
Próximo

Lições de “Planet of Cities” para o Brasil